segunda-feira, 15 de março de 2010

Constituição, Ayahuasca e o Conad: um novo caminho


Constituição, Ayahuasca e o Conad: um novo caminho
por: Jair Araújo Fagundes

1. A Constituição da República Federativa do Brasil, já em seu preâmbulo, reconhece a liberdade como pressuposto de sociedade pluralista, formada de diversas concepções políticas, sociais, religiosas e culturais, retratando o processo de formação histórica do povo brasileiro. Vai além, não só ao assegurar, no rol de direitos fundamentais, a liberdade de crença, opinião e consciência enquanto direitos fundamentais colocados além da disposição do legislador, mas ao ordenar que o Estado Brasileiro garanta, apóie, incentive e proteja as manifestações culturais populares, indígenas e afro-brasileiras enquanto participantes do processo civilizatório nacional (art. 215 e § 1º, CF).

2. Nas disposições constitucionais que reconhecem a participação de diversas culturas e grupos na formação da nação brasileira, e não só na perspectiva dos direitos fundamentais de credo, consciência e opinião, está o fundamento jurídico-constitucional da realização, pelo CONAD – Conselho Nacional Antidrogas, nos dias 8 e 9 de março de 2006, em Rio Branco/AC, do seminário para escolha de 6 representantes de entidades que fazem uso de ayahuasca no meio urbano e que comporão – juntamente com seis renomados especialistas de diversas áreas das ciências (direito, psiquiatria, antropologia, farmacologia/bioquímica, psicologia, sociologia) – grupo multidisciplinar de trabalho destinado a estudar, levantar e acompanhar o uso religioso da ayahuasca e a pesquisa de sua utilização terapêutica.

3. O CONAD é órgão da SENAD – Secretaria Nacional Antidrogas, entes que delineiam a política brasileira referente às drogas, definem o que é substância entorpecente para fins de persecução penal e representam o Brasil junto à comunidade internacional nos foros deliberativos acerca de drogas (prevenção, tráfico, repressão, consumo etc). É destes órgãos a decisão de permitir o uso religioso da substância psicoativa conhecida, genericamente, como ayahuasca (mariri, yagé, caapi, natema, daime, vegetal etc) em rituais religiosos a partir da verificação de que este uso: i) é expressão de religião ancestral, de origem indígena e anterior à formação da cultura ocidental judaico-cristã; ii) não há abuso nem dano à saúde mental e física em decorrência de seu uso religioso; iii) contribui para a afirmação da identidade cultural brasileira e, em especial, da Amazônia.

4. Esta decisão do Governo Brasileiro se constitui, de per si, em vívida afirmação de Soberania e de valorização, reconhecimento e respeito às manifestações culturais de seu povo. Ao mesmo tempo contrariou orientação de agências estatais americanas de combate às drogas que viam e vêem na ayahuasca apenas uma, dentre tantas, das substâncias que a compõe, a DMT, em raciocínio análogo ao de quem condenaria o guaraná (de qualquer marca), refrigerantes tipo cola’s, café ou chá de cidreira apenas ao saber que têm, todos, substâncias psicoativas como um dos seus ingredientes, pouco importando a quantidade ou o efeito concreto.

5. Originalmente ayahuasca, fruto do cozimento de duas plantas (o cipó Bannisteriopsis caapi e a folha Psychotria viridis), nasceu entre os índios, cada grupo indígena, às vezes, cada tribo, elaborando-a de modo diverso, tendo em comum, apenas, seu uso religioso. Do meio indígena decorreu o uso por caboclos, mestiços, curanderos, vegetalistas, como alguns são conhecidos. A partir de 1920, no Acre, com Raimundo Irineu Serra, deu-se início a seu uso urbano, agora com o nome de Daime e com introdução de elementos cristãos e ritual com formato original. Em fins da década de 50 surge uma variante, denominada de Barquinha, criada por Daniel Pereira de Matos. Durante os anos 60, em Rondônia, aparece o Vegetal, tendo como fundador José Gabriel da Costa.

6. Destas três grandes vertentes do uso urbano decorreram, nos últimos 30 anos, diversas outras entidades e usos, com enorme variação de rituais e doutrinas, de modo que a mesma palavra, ayahuasca, daime ou vegetal designa entidades e usos diferentes e, não raro, conflitantes. Um exemplo: Daime designa no Centro-Sul brasileiro, Itália, Espanha, França e Argentina doutrina diferente da criada por quem cunhou este termo na Amazônia e que ainda é mantida, o que, a despeito de não caracterizar um ilícito de qualquer ordem, induz a considerar igual fenômenos culturais que em verdade são diferentes, gerando confusão na mídia, na opinião pública e mesmo junto ao Poder Público ao atribuir predicados, virtudes ou deformações que são próprios e exclusivos de dado grupo e não de outros: há quem use Daime associado a cannabis sativa (maconha), há quem usa só Daime com efeitos e doutrinas diferentes; uns comercializam ayahuasca ou as plantas de que é composta, outros repugnam tal comércio. Estas diferenças, de enorme relevo, merecem, por isto mesmo, individualização. Assim como dizer-se cristão pouco diz da religião de alguém, impondo-se que se esclareça se católico, evangélico, pentecostal, presbiteriano, espírita, batista etc, ayahuasca também carece de complementação quanto a que uso e prática nos reportamos quando invocamos este termo.

7. O CONAD não escolheu os representantes das entidades que fazem uso da ayahuasca: preferiu que as entidades, reunidas, escolhessem. É possível discutir-se esse método de seleção, mas não se tem como negar a legitimidade democrática e cidadã que advém desta escolha, afastando critérios que poderiam ser tachados de arbitrários. Com o objetivo de que os escolhidos espelhassem, o máximo possível, os diversos usos e práticas da ayahuasca no Brasil, o CONAD dividiu os diversos segmentos que usam ayahuasca em grupos para que indicassem, cada segmento ou grupo, representante das entidades que: a) crêem preservar a Doutrina de Raimundo Irineu Serra; b) professam a Doutrina de Daniel Pereira de Matos (Barquinha); c) cultivam os ensinamentos deixados por José Gabriel da Costa (Vegetal); d) mantêm a doutrina deixada por Sebastião Mota, além de dois representantes de outros usos de ayahuasca diversos daqueles, num total de 6.

8. A distinção feita pelo CONAD, sem prejuízo de outros critérios que poderiam ser utilizados: i) espelhou critério histórico e alinhou por fundador, tanto quanto possível, os diversos segmentos e doutrinas; ii) colaborou para melhor esclarecimento do assunto junto à opinião pública, mídia e governo – que passarão a ter um mínimo de referência na identificação de grupos e práticas diferentes entre si e que, a despeito de suas diferenças abissais, eram considerados iguais e; iii) contribuiu para o processo de maturação, autodescobrimento, fortalecimento e afirmação da identidade de cada grupo. Talvez esse seja o efeito mais positivo daquela classificação: estimulou a assunção, por cada segmento, de sua história, características, ritual e doutrina.

9. O Estado Brasileiro deu notável demonstração de soberania e respeito à sua história e a seu povo ao reconhecer manifestação cultural própria e autêntica, provinda de quem contribuiu para construção da identidade nacional, os índios. Nas palavras do Presidente do CONAD, Gen. Paulo Roberto Y. Uchoa: “não se discte a autorização para o uso ritual da ayahuasca no Brasil. Isto já é pacífico há muito” (grifei). Ocorre que ayahuasca, com sua expansão no meio urbano a partir de 1980, tomou novas conformações, diferente de suas origens, de modo que há, na atualidade, a) uso não-ritual (a título de experiências terapêuticas que desafiam o código de ética médica, terapias alternativas, uso recreativo); b) intenso e lucrativo comércio (com ofertas na internet, jornais; em algumas cidades já há até disk daime), c) turismo (eufemisticamente denominado de religioso); d) introdução, por alguns e bem definidos grupos, de cannabis sativa e outros psicoativos associados a ayahuasca, os quais abrem a discussão acerca do caráter ilícito, sob a ótica penal, desta associação. As nuances que a ayahuasca assumiu na atualidade exigem estudo, levantamento, reflexão madura e serena e decisão por parte dos envolvidos e do Estado.

10. Há quem veja na postura do CONAD tanto i) tentativa de restrição do direito à liberdade religiosa sob o manto da regulamentação, quanto ii) liberalidade incompatível com o combate às drogas. São posições extremas. Não há o mínimo indício de que o Estado queira discriminar, sob o pálio da normatização ou estudo, dada religião. Mais parece buscar identificar e garantir o que é o exercício de religiosidade ancestral e verdadeira e separá-la do consumo recreacional, comercial, nocivo ou irresponsável de qualquer substância psicoativa. A tarefa, conquanto difícil, insinua-se necessária e não é pioneira: nos Estados Unidos, na esteira da autorização para uso ritual do psicoativo peyote pelos nativos, surgiram questões relativas à legitimidade do uso da maconha por grupos que afirmavam praticar religião, tendo a Administração e o Judiciário estadunidenses negado tal reconhecimento, distinguindo ou buscando distinguir o que é i) prática religiosa, ali denominada de sincera [no sentido de que expressaria religiosidade nativa, própria, milenar], ii) de estilo ou filosofia de vida que faz uso de [qualquer] psicotrópico, garantindo àquela seu livre exercício.

11. É certo que: i) em se tratando de religião, prática cultural, tema onde não há definições prévias nem estanques e o que é ritual ou sagrado para um não é para outro, com enorme possibilidade de preconceitos e; ii) diante dos inúmeros exemplos que a história oferece de intolerância e perseguição, tanto por parte do Estado quanto por parte de outro segmento religioso, não raro oculta – a intolerância – sob o argumento de defesa da saúde pública, do interesse coletivo, da moral ou bons costumes e sob os auspícios da ciência, merece redobrada cautela e reflexão estudos e decisões relativos ao tema.

12. Entretanto, repise-se, o Estado Brasileiro, por seus órgãos, tem demonstrado cuidado e responsabilidade no trato da questão, evidenciando que se preocupa, simultaneamente, em garantir prática religiosa ancestral com, no mínimo, três mil anos de existência, em rigoroso respeito à liberdade religiosa, como, também, tem mostrado que quer evitar, como lhe cabe, o uso irresponsável e nocivo de qualquer psicotrópico, quer em cumprimento à Constituição Federal, quer em cumprimento aos tratados internacionais de que é signatário como membro da comunidade das nações.

13. Ao abandonar, como fez há muito, o mero exame objetivo como critério para classificação de substância psicoativa e buscar decidir com fundamento em estudos antropológicos, sociológicos e psico-neurológicos, além de jurídicos e bioquímicos, o Estado Brasileiro age buscando uma visão global e multifacetária do fenômeno, o que lhe permite decidir se dado uso de um psicoativo, além de ser expressão de religiosidade, é inofensivo ao homem, possibilitando ainda que reconheça (o que sempre é difícil) o outro, o diferente, aquele que tem prática cultural, religião, cor, língua diversa da predominante. E este é um bom caminho.Constituição, Ayahuasca e o Conad: um novo caminho

1. A Constituição da República Federativa do Brasil, já em seu preâmbulo, reconhece a liberdade como pressuposto de sociedade pluralista, formada de diversas concepções políticas, sociais, religiosas e culturais, retratando o processo de formação histórica do povo brasileiro. Vai além, não só ao assegurar, no rol de direitos fundamentais, a liberdade de crença, opinião e consciência enquanto direitos fundamentais colocados além da disposição do legislador, mas ao ordenar que o Estado Brasileiro garanta, apóie, incentive e proteja as manifestações culturais populares, indígenas e afro-brasileiras enquanto participantes do processo civilizatório nacional (art. 215 e § 1º, CF).

2. Nas disposições constitucionais que reconhecem a participação de diversas culturas e grupos na formação da nação brasileira, e não só na perspectiva dos direitos fundamentais de credo, consciência e opinião, está o fundamento jurídico-constitucional da realização, pelo CONAD – Conselho Nacional Antidrogas, nos dias 8 e 9 de março de 2006, em Rio Branco/AC, do seminário para escolha de 6 representantes de entidades que fazem uso de ayahuasca no meio urbano e que comporão – juntamente com seis renomados especialistas de diversas áreas das ciências (direito, psiquiatria, antropologia, farmacologia/bioquímica, psicologia, sociologia) – grupo multidisciplinar de trabalho destinado a estudar, levantar e acompanhar o uso religioso da ayahuasca e a pesquisa de sua utilização terapêutica.

3. O CONAD é órgão da SENAD – Secretaria Nacional Antidrogas, entes que delineiam a política brasileira referente às drogas, definem o que é substância entorpecente para fins de persecução penal e representam o Brasil junto à comunidade internacional nos foros deliberativos acerca de drogas (prevenção, tráfico, repressão, consumo etc). É destes órgãos a decisão de permitir o uso religioso da substância psicoativa conhecida, genericamente, como ayahuasca (mariri, yagé, caapi, natema, daime, vegetal etc) em rituais religiosos a partir da verificação de que este uso: i) é expressão de religião ancestral, de origem indígena e anterior à formação da cultura ocidental judaico-cristã; ii) não há abuso nem dano à saúde mental e física em decorrência de seu uso religioso; iii) contribui para a afirmação da identidade cultural brasileira e, em especial, da Amazônia.

4. Esta decisão do Governo Brasileiro se constitui, de per si, em vívida afirmação de Soberania e de valorização, reconhecimento e respeito às manifestações culturais de seu povo. Ao mesmo tempo contrariou orientação de agências estatais americanas de combate às drogas que viam e vêem na ayahuasca apenas uma, dentre tantas, das substâncias que a compõe, a DMT, em raciocínio análogo ao de quem condenaria o guaraná (de qualquer marca), refrigerantes tipo cola’s, café ou chá de cidreira apenas ao saber que têm, todos, substâncias psicoativas como um dos seus ingredientes, pouco importando a quantidade ou o efeito concreto.

5. Originalmente ayahuasca, fruto do cozimento de duas plantas (o cipó Bannisteriopsis caapi e a folha Psychotria viridis), nasceu entre os índios, cada grupo indígena, às vezes, cada tribo, elaborando-a de modo diverso, tendo em comum, apenas, seu uso religioso. Do meio indígena decorreu o uso por caboclos, mestiços, curanderos, vegetalistas, como alguns são conhecidos. A partir de 1920, no Acre, com Raimundo Irineu Serra, deu-se início a seu uso urbano, agora com o nome de Daime e com introdução de elementos cristãos e ritual com formato original. Em fins da década de 50 surge uma variante, denominada de Barquinha, criada por Daniel Pereira de Matos. Durante os anos 60, em Rondônia, aparece o Vegetal, tendo como fundador José Gabriel da Costa.

6. Destas três grandes vertentes do uso urbano decorreram, nos últimos 30 anos, diversas outras entidades e usos, com enorme variação de rituais e doutrinas, de modo que a mesma palavra, ayahuasca, daime ou vegetal designa entidades e usos diferentes e, não raro, conflitantes. Um exemplo: Daime designa no Centro-Sul brasileiro, Itália, Espanha, França e Argentina doutrina diferente da criada por quem cunhou este termo na Amazônia e que ainda é mantida, o que, a despeito de não caracterizar um ilícito de qualquer ordem, induz a considerar igual fenômenos culturais que em verdade são diferentes, gerando confusão na mídia, na opinião pública e mesmo junto ao Poder Público ao atribuir predicados, virtudes ou deformações que são próprios e exclusivos de dado grupo e não de outros: há quem use Daime associado a cannabis sativa (maconha), há quem usa só Daime com efeitos e doutrinas diferentes; uns comercializam ayahuasca ou as plantas de que é composta, outros repugnam tal comércio. Estas diferenças, de enorme relevo, merecem, por isto mesmo, individualização. Assim como dizer-se cristão pouco diz da religião de alguém, impondo-se que se esclareça se católico, evangélico, pentecostal, presbiteriano, espírita, batista etc, ayahuasca também carece de complementação quanto a que uso e prática nos reportamos quando invocamos este termo.

7. O CONAD não escolheu os representantes das entidades que fazem uso da ayahuasca: preferiu que as entidades, reunidas, escolhessem. É possível discutir-se esse método de seleção, mas não se tem como negar a legitimidade democrática e cidadã que advém desta escolha, afastando critérios que poderiam ser tachados de arbitrários. Com o objetivo de que os escolhidos espelhassem, o máximo possível, os diversos usos e práticas da ayahuasca no Brasil, o CONAD dividiu os diversos segmentos que usam ayahuasca em grupos para que indicassem, cada segmento ou grupo, representante das entidades que: a) crêem preservar a Doutrina de Raimundo Irineu Serra; b) professam a Doutrina de Daniel Pereira de Matos (Barquinha); c) cultivam os ensinamentos deixados por José Gabriel da Costa (Vegetal); d) mantêm a doutrina deixada por Sebastião Mota, além de dois representantes de outros usos de ayahuasca diversos daqueles, num total de 6.

8. A distinção feita pelo CONAD, sem prejuízo de outros critérios que poderiam ser utilizados: i) espelhou critério histórico e alinhou por fundador, tanto quanto possível, os diversos segmentos e doutrinas; ii) colaborou para melhor esclarecimento do assunto junto à opinião pública, mídia e governo – que passarão a ter um mínimo de referência na identificação de grupos e práticas diferentes entre si e que, a despeito de suas diferenças abissais, eram considerados iguais e; iii) contribuiu para o processo de maturação, autodescobrimento, fortalecimento e afirmação da identidade de cada grupo. Talvez esse seja o efeito mais positivo daquela classificação: estimulou a assunção, por cada segmento, de sua história, características, ritual e doutrina.

9. O Estado Brasileiro deu notável demonstração de soberania e respeito à sua história e a seu povo ao reconhecer manifestação cultural própria e autêntica, provinda de quem contribuiu para construção da identidade nacional, os índios. Nas palavras do Presidente do CONAD, Gen. Paulo Roberto Y. Uchoa: “não se discte a autorização para o uso ritual da ayahuasca no Brasil. Isto já é pacífico há muito” (grifei). Ocorre que ayahuasca, com sua expansão no meio urbano a partir de 1980, tomou novas conformações, diferente de suas origens, de modo que há, na atualidade, a) uso não-ritual (a título de experiências terapêuticas que desafiam o código de ética médica, terapias alternativas, uso recreativo); b) intenso e lucrativo comércio (com ofertas na internet, jornais; em algumas cidades já há até disk daime), c) turismo (eufemisticamente denominado de religioso); d) introdução, por alguns e bem definidos grupos, de cannabis sativa e outros psicoativos associados a ayahuasca, os quais abrem a discussão acerca do caráter ilícito, sob a ótica penal, desta associação. As nuances que a ayahuasca assumiu na atualidade exigem estudo, levantamento, reflexão madura e serena e decisão por parte dos envolvidos e do Estado.

10. Há quem veja na postura do CONAD tanto i) tentativa de restrição do direito à liberdade religiosa sob o manto da regulamentação, quanto ii) liberalidade incompatível com o combate às drogas. São posições extremas. Não há o mínimo indício de que o Estado queira discriminar, sob o pálio da normatização ou estudo, dada religião. Mais parece buscar identificar e garantir o que é o exercício de religiosidade ancestral e verdadeira e separá-la do consumo recreacional, comercial, nocivo ou irresponsável de qualquer substância psicoativa. A tarefa, conquanto difícil, insinua-se necessária e não é pioneira: nos Estados Unidos, na esteira da autorização para uso ritual do psicoativo peyote pelos nativos, surgiram questões relativas à legitimidade do uso da maconha por grupos que afirmavam praticar religião, tendo a Administração e o Judiciário estadunidenses negado tal reconhecimento, distinguindo ou buscando distinguir o que é i) prática religiosa, ali denominada de sincera [no sentido de que expressaria religiosidade nativa, própria, milenar], ii) de estilo ou filosofia de vida que faz uso de [qualquer] psicotrópico, garantindo àquela seu livre exercício.

11. É certo que: i) em se tratando de religião, prática cultural, tema onde não há definições prévias nem estanques e o que é ritual ou sagrado para um não é para outro, com enorme possibilidade de preconceitos e; ii) diante dos inúmeros exemplos que a história oferece de intolerância e perseguição, tanto por parte do Estado quanto por parte de outro segmento religioso, não raro oculta – a intolerância – sob o argumento de defesa da saúde pública, do interesse coletivo, da moral ou bons costumes e sob os auspícios da ciência, merece redobrada cautela e reflexão estudos e decisões relativos ao tema.

12. Entretanto, repise-se, o Estado Brasileiro, por seus órgãos, tem demonstrado cuidado e responsabilidade no trato da questão, evidenciando que se preocupa, simultaneamente, em garantir prática religiosa ancestral com, no mínimo, três mil anos de existência, em rigoroso respeito à liberdade religiosa, como, também, tem mostrado que quer evitar, como lhe cabe, o uso irresponsável e nocivo de qualquer psicotrópico, quer em cumprimento à Constituição Federal, quer em cumprimento aos tratados internacionais de que é signatário como membro da comunidade das nações.

13. Ao abandonar, como fez há muito, o mero exame objetivo como critério para classificação de substância psicoativa e buscar decidir com fundamento em estudos antropológicos, sociológicos e psico-neurológicos, além de jurídicos e bioquímicos, o Estado Brasileiro age buscando uma visão global e multifacetária do fenômeno, o que lhe permite decidir se dado uso de um psicoativo, além de ser expressão de religiosidade, é inofensivo ao homem, possibilitando ainda que reconheça (o que sempre é difícil) o outro, o diferente, aquele que tem prática cultural, religião, cor, língua diversa da predominante. E este é um bom caminho.

Jair Araújo Fagundes
Integrante eleito do grupo de estudo multidisciplinar do CONAD. Juiz Federal.

fonte:
http://www2.uol.com.br/pagina20/16052006/opiniao1.htm

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